Existe uma ideia muito difundida de
que as pessoas podem gostar uma da outra independentemente de nível econômico,
nível cultural, rede de relações e maneiras de viver a vida. Seria algo assim:
não importa o contexto, a pessoa pode se atrair pela outra, se apaixonar, casar
e serem felizes. Essa ideia é bonita – e às vezes até acontece – mas tem sérias
limitações.
As pessoas têm diferenças muito
grandes, e vínculos profundos exigem algum grau de reciprocidade e compatibilidade
de mundo. A pessoa por quem estou interessado vive em certo ambiente: tem
determinadas condições de vida, valores, hábitos, amizades, família, um jeito
de circular pelo mundo. Esse conjunto poderá ou não acolher o outro – e isso
vale nos dois sentidos. Não se trata só de renda, mas de valores, tipo de lugar
que frequenta, pessoas que a cercam, modo de enxergar o que é uma “boa vida”.
Gostar de um mundo, sentir-se
pertencente a ele, achar natural usufruir e participar de certas experiências é
algo mais profundo do que “poder” financeiramente. Se o outro vem de contexto
muito diferente, integrado a outros estilos de vida, pensamentos, hábitos
culturais e alimentares, outra maneira de ver o que importa na vida, as
diferenças aparecem em vários níveis. Isso ajuda a entender, de forma concreta,
a necessidade de homogamia ou homofilia: para
haver envolvimento amoroso ou mesmo amistoso profundo, precisa existir alguma
compatibilidade de mundo. Sem isso, as pessoas podem viver em “dimensões
diferentes”, que se tocam só em alguns pontos soltos.
Entra aí a hipergamia: a
tendência de desejar algo “melhor” (entre aspas) – mais dinheiro, mais cultura,
mais viagens, mais lazer, melhor comida, ambientes mais valorizados. Essa
hierarquia do desejável é muito intuitiva. Mas ela vale dos dois lados:
se um lado está buscando “para cima”, por que o outro lado – que também tem
seus desejos e sua própria tendência hipergâmica – aceitaria alguém que não lhe
oferece algo admirável, desejável, com o qual queira se identificar? Isso já
desequilibra a relação de saída.
Essa discussão leva diretamente à
pergunta: que mundo concreto cada pessoa oferece ao se envolver?
O mundo em que cada pessoa vive – e
que ela oferece ao parceiro – é composto por condições objetivas e subjetivas.
Ele é configurado em grande parte pela capacidade econômica, mas não se reduz a
isso. Bairro em que se mora, tipo de casa, clube (se houver), restaurantes,
viagens possíveis, tempo de lazer, vestuário, carro… tudo isso participa do que
podemos chamar de mundo de convivência ou mundo
compartilhado: o cenário em que o relacionamento acontece.
Alguns recursos melhoram objetivamente a
qualidade de vida: quantas horas se passa no trânsito para ir e voltar do
trabalho; acesso à saúde; ensino de qualidade; tempo de lazer; tempo para
dormir; tempo para ver amigos; dinheiro para comprar coisas boas; dinheiro para
viajar. Há também necessidades básicas cuja satisfação muda radicalmente a
vida: comida adequada, abrigo, possibilidade de dormir bem, proteção contra o
frio, acesso a medicações. Sem isso, a vida fica comprometida em seus
fundamentos.
Outros elementos dizem respeito
ao estilo de vida e à motivação. Ter recursos não garante que
a pessoa vá aproveitar o que a cidade, a natureza e a cultura oferecem. É
preciso ter gosto e disposição para frequentar parques, praças, centros
culturais, exposições, festas públicas, shows gratuitos – ou, em contextos
menos urbanos, os recursos que aquele lugar permite. Alguém pode se realizar em
carnaval, shows, teatro, dança; outra pessoa em programas caseiros, atividades
intelectuais, artísticas ou espirituais. Isso não significa, por si só, “aproveitar
mais ou menos a vida”.
Mas, quando pensamos no mundo que
será compartilhado, entra um critério a mais: não basta eu gostar do meu
jeito de viver, é importante que aquilo que ofereço também envolva o
parceiro, o alegre, o faça aproveitar e se sentir pertencente. O mundo
precisa ser minimamente compartilhável.
Tão importante quanto ter
recursos – econômicos, culturais, escolaridade, network – é o uso
que se faz deles. Duas pessoas com mesma renda podem viver em mundos muito
diferentes. Uma explora a cidade, varia programas, aproveita férias, cultiva
amizades. Outra se restringe a uma rotina mínima, quase sem lazer ou
curiosidade. O mesmo vale para a cultura: alguém com alta escolaridade pode
frequentar exposições, concertos, cursos e enriquecer a vida – ou praticamente
ignorar tudo isso.
Quem vive em uma cidade grande, com
muitos serviços e opções de lazer, teoricamente tem mais recursos disponíveis.
Ainda assim, há gente que vive de forma muito restrita, com menos experiências
do que alguém em uma cidade pequena, mas que aproveita intensamente o que tem.
Ao mesmo tempo, existem pessoas com poucos recursos econômicos que levam uma
vida “colorida”: sabem o que acontece ao seu redor, aproveitam eventos
gratuitos, espaços públicos, encontros simples com amigos. A vida é rica porque
existe gosto de viver a vida: vontade de fazer coisas, participar,
frequentar, se entregar às possibilidades disponíveis.
Esse “gosto de viver” talvez seja um
dos principais determinantes das atividades. Envolve expandir limites, fazer
contatos, se envolver, interagir com o que a vida oferece. Sempre há algo
possível dentro das limitações de cada um. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer
que, em alguns casos, a dificuldade de aproveitar a vida não é simples “falta
de vontade”, mas pode estar ligada a depressão, ansiedade, timidez extrema,
sobrecarga de trabalho ou outras condições psicológicas e sociais. Não é só uma
questão de caráter.
Quando alguém “não gosta de nada” ou
“não tem motivação para quase nada”, isso tende a empobrecer o mundo
compartilhado: a vida do casal fica mais repetitiva, com os mesmos hábitos, em
qualquer faixa de recursos. Mas é importante não transformar isso em moralismo:
às vezes, há sofrimento psíquico e contexto adverso por trás.
Além da dimensão econômica e do gosto
pela vida, há o componente social: amigos, grupos, ambientes que a
pessoa frequenta. As amizades ajudam a manter o relacionamento, oferecem apoio,
ajudam a interpretar situações, podem abrir oportunidades de lazer, de
trabalho, de projetos. A rede de relações – parentes, amigos, conhecidos –
compõe o clima emocional, as conversas, os valores e até o modo de enfrentar
crises.
Outro elemento são as viagens.
Elas dependem de condição econômica e também do valor cultural atribuído a
conhecer outros lugares. Algumas pessoas priorizam viagens; outras quase não
viajam, mesmo podendo. Viagens criam memórias compartilhadas, novos temas de
conversa, ampliam a visão de mundo do casal.
Soma-se a isso o lazer
cotidiano: sair para restaurantes, cinema, teatro, shows, parques,
exposições; ou preferir cozinhar em casa, ver filmes, receber amigos. Tudo isso
faz parte do mundo de convivência.
O mundo econômico aparece também
nas condições de saúde e educação: que escolas os filhos (se
houver) poderão frequentar, que hospitais e serviços de saúde estarão
disponíveis, que especialistas e exames são acessíveis, que tipo de alimentação
e de moradia é viável. Esse raciocínio vale para casais com filhos, sem filhos,
heterossexuais ou homoafetivos: em todos os casos, há um mundo compartilhado em
jogo.
Esse mundo é apenas parcialmente determinado
por nível de escolaridade, renda e idade. Dentro de cada faixa há enorme
variação. Uma pessoa com muito dinheiro e alta escolaridade pode viver uma vida
pobre em experiências, obcecada por acumular, com o dinheiro parado. Outra, com
condições semelhantes, pode viajar, aproveitar temporadas, ter bom acesso à
saúde, comprar tempo livre, promover encontros, usufruir da cultura e do lazer.
O que tende a ser comum nesses casos
é a segurança econômica: ter reservas para emergências e certa
liberdade para aceitar ou recusar situações desagradáveis. Mesmo assim, muitas
pessoas com dinheiro vivem como se não tivessem, movidas por medos e crenças.
Já quem realmente não tem bens enfrenta uma limitação concreta, que reduz a
margem de escolha.
Quando duas pessoas se envolvem
amorosamente, não se ligam apenas uma à outra, mas também aos mundos em
que cada uma vive. O mundo em que cada parceiro vive – e que oferece ao
outro – é algo valioso, talvez imprescindível. Diferenças de mundo podem ser
enriquecedoras, especialmente para quem “migra” para um universo mais amplo e
estimulante. Mas para quem teria de fazer um “downgrade”, abrir mão de muitos
recursos, hábitos e oportunidades, a adaptação pode ser custosa ou inviável.
Em resumo, não basta perguntar
“quanto essa pessoa tem?” ou “qual é a sua escolaridade?”, nem se apoiar na
fantasia de que “o amor vence qualquer diferença de mundo”. A pergunta mais
realista é: como essa pessoa vive? Como usa os recursos que
possui? Qual é o seu gosto de viver a vida? Qual é o mundo concreto – de
lugares, pessoas, hábitos, experiências e oportunidades – que ela já construiu
e que você passaria a compartilhar ao se comprometer com ela?
Algumas perguntas práticas ajudam a
avaliar esse mundo de convivência e a compatibilidade entre mundos:
- Como essa pessoa usa o tempo
livre?
- Que tipo de lazer ela
pratica e que tipo de lazer ela oferece?
- Que amigos, família e
ambientes vêm junto com ela?
- Ela tem gosto de viver ou
vive em modo “sobreviver”?
- O mundo que ela oferece é um
mundo em que você se vê vivendo, crescendo e se alegrando junto?
- As diferenças entre o seu
mundo e o dela são sobretudo enriquecedoras, ou geram sensação de
desajuste, downgrade ou permanente desconforto?
Essas questões tornam concreto porque homogamia,
homofilia e hipergamia não são apenas conceitos abstratos, mas forças
centrais na formação, na qualidade e na viabilidade dos relacionamentos
amorosos profundos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário